Tela do artista plástico moçambicano Antero Machado.

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sexta-feira, 8 de julho de 2011

Delicias da minha juventude III - Ano 68

O meu envolvimento com os estudantes de Fisica (ver aqui), embora eu ainda fosse um secundarista, me levaram a situações inusitadas no ano de 68, das quais participei ativamente, não com uma visão politica concreta, pois eu ainda não a tinha e meu preparo era rudimentar, mas como um espectador atento e um dos milhares de agentes dos fatos intensos e marcantes que se seguiram.
O ano de 68 foi de intensas mobilizações estudantis. Ocorreram centenas de manifestações, entre as mais significativas foram o enterro do estudante Edson Luís morto pelo regime militar, e a histórica passeata dos 100 mil no Rio, maior mobilização até então contra os militares. Mas antes destes episódios, muita coisa já tinha acontecido. 
No ano de 1967 ocorreram algumas poucas lutas e eram em sua maioria lutas de importância regional. A articulação do movimento estudantil nacional ainda avançava. 
Os estudantes começavam a compreender que a política educacional do governo era exatamente o oposto da que pretendiam. O movimento estudantil eclodiu em reação às medidas promovidas pelo acordo entre o Ministério da Educação do governo do general Castelo Branco e a agência USAID (United States Agency for International Development), instituição estadunidense que existe até hoje. Os estudante sentiam a necessidade de avançar na sua organização e em suas lutas. As condições para a explosão do ano seguinte amadureciam. O ano de 1968 começou com algumas lutas ainda em janeiro e fevereiro, encabeçadas por secundaristas e estudantes do restaurante Calabouço, no Rio, exigindo mais vagas nas universidades e melhorias no restaurante. Foram manifestações importantes e combativas, mas nada indicava o que viria depois. Em março o movimento cresceu. Estudantes da USP, Fundação Getúlio Vargas e PUC ocuparam suas reitorias. No Rio de Janeiro as mobilizações do Calabouço se fortaleciam. O auge da revolta estudantil aconteceu com a reação ao assassinato do secundarista Edson Luís de Lima Souto, funcionário do restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, depois de baleado por um policial militar.
Organizou-se imediatamente uma passeata e marcharam em direção a Assembleia Legislativa do Rio. “Mataram um estudante! Se fosse um filho seu?” gritavam os estudantes carregando o corpo de Edson.  Ao chegar a Assembleia, os manifestantes ocuparam o prédio. 
A partir daí o movimento estudantil iria entrar em ebulição crescente. Protestos ocorreram simultaneamente em todo o país, e o governo respondeu com mais repressão. 
No 1º de Abril (data correta da revolução de 64), os estudantes organizaram “comemorações” ao golpe militar, e mais uma vez ocuparam as ruas.  
No restante do mês de abril e maio, as lutas voltaram para dentro das escolas e universidades, mais para recuperar o fôlego e tentar se organizar em um protesto nacional. 
Apesar da violência dos militares, ainda ocorriam pequenos atos de rua. 
Os estudantes não estavam vencidos.
Em maio, cerca de três mil estudantes tomaram de assalto a Reitoria da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Cercados por batalhões militares, os estudantes resistiram com barricadas e derrubaram a primeira tentativa de instituir o ensino pago na Universidade. 
Em junho as coisas voltaram a esquentar. O alvo agora era definitivamente a nova política educacional do governo. Os 16 mil estudantes da UFRJ entraram em greve. A UEE-SP convocou uma concentração em frente à reitoria da USP que seria novamente ocupada.
Em Belo Horizonte ocorreu a ocupação da Escola de Direito, no centro da cidade e a policia a cercou. Os estudantes impediram a invasão arremessando cadeiras, mesas, maquinas de escrever, das janelas do prédio cercado por barricadas. A ocupação durou vários dias.
A “sexta-feira sangrenta” como ficou conhecida, foi uma batalha de rua entre estudantes e forças do governo que durou mais de sete horas e teve mais de mil presos.(veja aqui)
Enquanto isso os estudantes da FFLCH, então Faculdade de Filosofia da USP, ocupavam o prédio, dispostos a lá ficarem até verem suas reivindicações atendidas. 
Em Brasília a polícia invadia com truculencia a UnB, espancando alunos e professores. 
Atos de rua ocorreram em Fortaleza, Belo Horizonte e Porto Alegre. 
No dia 26 de junho, 100 mil estudantes ocuparam as ruas do Rio, na maior mobilização estudantil até então da história do país (veja aqui). 
A passeata dos cem mil foi um dos últimos acontecimentos estudantis daquela epoca. 
Em julho ocorreria ainda uma nova passeata com 50 mil estudantes, mas a partir daí o movimento começou a refluir.
Aqui em Beagá o ano de 68 foi um ano de intensa mobilização e na Universidade Federal de Minas Gerais,  os estudantes ficaram alvoroçados. 
Lembro-me dos longos  preparativos para as passeatas, onde era discutida toda a logística.
As convocações se davam pela distribuição de milhares de folhetos mimeografados e distribuídos pelas escolas. Nos DCEs das escolas, a boca miúda, as estratégias eram traçadas. Horário de concentração, local, percurso e logística para o enfrentamento da repressão militar que certamente ocorreria. Os estudantes afluiam para o local de encontro vindos de areas e caminhos diversos, sempre em pequenos grupos para não chamar a atenção. No momento marcado, num instante apareciam milhares, já gritando palavras de ordem. 
As passeatas eram feitas em sentido contrario ao trafego, como uma estrategia a mais para dificultar o deslocamento dos militares.
Eram formados os grupos de segurança com voluntarios mais aguerridos que protegeriam os estudantes, enfrentando a PM enquanto a passeata evoluia ou nas fugas pelas ruas da cidade. Não existiam armas de fogo e nem armas brancas. As armas dos estudantes eram as pedras.
Os rapazes e moças dos grupos de segurança recebiam bolsas contendo rolhas de garrafa e bolinhas de gude. As pedras eram achadas facilmente nas ruas e muros.
As rolhas eram utilizadas contra a cavalaria e faziam os cavalos escorregarem e tombarem no asfalto. Grupos de estudantes da segurança, então envolviam os militares. O pau comia!
As bolinhas de gude eram utilizadas nos estilingues (bodoques aqui em Minas) e atirados contra os PM em formação de combate ou na passagem das viaturas. Era uma arma terrível! Eram vistas inúmeras viaturas tombadas com os para-brisas quebrados pelas bolinhas. Alguns mais sofisticados usavam esferas de rolamentos. O efeito era devastador!
Todos eram orientados a levarem garrafas de agua e lenços a serem utilizados quando a policia jogava as bombas de gás lacrimogênio. Vários estudantes mais destemidos as pegavam no chão e as jogavam de volta na formação militar. O Exercito não saia às ruas ficando em seus quarteis de prontidão. Quem cuidava dos movimentos de rua era a Policia Militar. 
Os PMs daquela época não eram treinados como os de hoje. Eram praticamente pessoas comuns de uniforme. Não existia esse aparato moderno, não se viam escudos ou capacetes com viseira e muito menos coletes a prova de bala. O enfrentamento só foi possível pois a briga era praticamente no braço. As armas da PM eram o cassetete, as bombas de gás, a formação militar e as vezes jatos de agua, embora portassem seus revolveres era raro algum atirar, a não ser quando se encontravam acuados. 
Ainda não existiam essas famigeradas balas de borracha e acreditem, a policia realmente não atirava. As mortes, dado o numero de pessoas envolvidas e o grande numero de manifestações, foram atos isolados.  Hematomas e vergões eram outra coisa.  Eram marcas de batalha e exibidas orgulhosamente como troféu. A adrenalina exalava pelos poros. 
A gente se enfrentava nos olhando olhos nos olhos.
Atualmente seria impossível se promover manifestações daquele porte, haja vista o aparato militar de hoje e o preparo profissional de seus integrantes. 
Os estudantes eram movidos a ideais, entusiasmo e revolta contra as novas diretrizes de ensino,  já antevendo o caos que se instalaria na educação. Estavam certos em seus temores!
Os enfrentamentos eram em ondas e a população se refugiava dentro das lojas do comercio local. Era uma verdadeira batalha campal.  Rapazes, moças e a Policia Militar. As vezes objetos eram lançados dos predios sobre os PMs pela população que acompanhava tudo.
Muita gente era presa, mas eram soltos no maximo até o dia seguinte. Os militares se preocupavam somente com as lideranças, figurinhas já carimbadas e de conhecimento amplo.
Em outubro deste ano foi realizado clandestinamente o XXX Congresso Nacional da UNE, em Ibiúna (SP) que foi cercado pela PM e onde foram presas diversas lideranças estudantis nacionais e entre eles Luís Travassos o presidente eleito, Vladimir Palmeira, José Dirceu, Franklin Martins e Jean Marc Von Der Weid. 
Acabaram-se aí todas as manifestações estudantis no Brasil (veja mais sobre). Foi implantado o famigerado acordo MEC/USAID e desarticulado todo o movimento agora sem lideranças.
A partir dessa época, varias lideranças estudantis estavam presas,  fugiram do pais ou caíram na clandestinidade. Ai sim, uma luta que era pela manutenção,  aprimoramento de um ensino de qualidade, maior investimento na educação e pela Universidade gratuita se tornou uma luta direta contra a ditadura, com o “endurecimento” das ações do governo após o ato institucional nº 5 promulgado em dezembro de 68.
Foram iniciados a partir de então os famosos "anos de chumbo", que durariam até 72/73. 
Quem viu, viu... quem não viu, não verá jamais.
Ainda continuo em minhas ruminâncias..... 


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