Tela do artista plástico moçambicano Antero Machado.

Tela do artista plástico moçambicano Antero Machado.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Causos de Minas IX– O casório

A vida era uma mansidão só.

Florêncio um dia comia bem, no outro mais ou menos, mas não reclamava nadinha.

Maior trabalho a que ele se propunha era ter que ir buscar lenha, ali mesmo no mato pertinho do corgo, pra fazer a gororoba de comer. 

Tinha uma hortinha, um pomar, umas galhinhas, algumas vacas, um cavalo, dois bois de carro e um bom pedaço de terra.

Parecia homem conformado com a vida que Deus lhe deu.

-   Levuma vidinha simprizinha quissosinhôveno, há de ver que eu tem ditudo pertim de casa, num priciso nem di í pra longe.

No corguinhoem frente tinha peixe de dar com pau e dava pouco trabalho pescar. 

Quem o via por ali, dizia que ele vivia solitario na sua tapera, de pau-a-pique e chão batido, assentada na beira do corgo, bem ao lado da estrada de terra.

Lugar bonito, mas ali faltava uma coisa de muita importancia, faltava mulher.

Homem que é homem, na roça, num pode ficar sem mulher. A casinha fica desajeitada, as criações pequenas ficam sem trato, a roupa fica sem cerzir, a horta murcha, enfim, é um desastre só a casa de homem desaparelhado. Alem de tudo, a casa fica uma tristeza de dar dó. Isso sem falar que o homem fica desambicioso, acomodado na vidinha, só pitando, olhando pro tempo  e coçando o bicho de pé.

Florêncio já andara pensando que havera de ter uma mulher pra esquentar a enxerga de noite, cuidar da casa, uns barrigudinhos correndo em volta do terreiro pra alegrar os dias e alem do mais, ele tinha, que um dia,  de tirar umas crias que cuidassem da sua velhice.

Ele já andava meio encimesmado com isso e eis que um dia o compadre Lioncio apareceu pruma prosa. Conversa vai e vem e ele parecendo ler o pensamento de Florencio, solta de sopetão:

- E ai cumpade, já rumou uma namoradinha?

-   Ãhn?... Ieu? Quequéisso?... Tenho não, sô! Eu tenho vergonha dimais da conta!...

-    Ó, cumpade... cê é um home remediado, num é tão disarrumado assim, inda é novo e alem dumais todo home arruma muié, asveis até mais de uma, sô! Cê já pensou a belezura qui é tê uma minina nova só para fazê as vontade, juntim no escurim do quarto, escondidim os dois, um chameguim só?!....

O caboclo ficou encasquetado, pensando naquilo e em como havera de ser. Teve até uma bruta duma dor de cabeça naquele dia. Danou a sonhar com uma companheira e acordava cedinho, e as vezes até no meio da noite com o bicho em riba, aprumadinho! 
Essa situação não durou um tantico de nada e ele logo deu jeito de ir ao arraial atrás do Lioncio para assuntar mais daquele trem que eles andaram conversando.

Ele chegou de mansinho e foi batata! O Lioncio o avistou e já foi logo mangando dele:

-   E aí, cumpade? E a namoradinha? Já enrabichou com arguma?

-  Namoradinha? Num tem ninguem que mi qué não, sô!

- Tem sim, cumpade! Cê quessa terinha toda, basta querê... já pensou uma menina nova esperano ocê cuns braço e as perna aberta na hora que ocê vortá da roça, naquela quentura quisó veno?...

A semente que o Lioncio plantara, brotou, começou a crescer e a dar frutos.

Florencio ficou até vesgo, a guela secou, quase teve engasgo e suou frio enquanto enfiava as mãos nos bolsos para esconder uma protuberânciazinha que surgia, mostra que o solitario já dava novamente sinal de vida.

Passou semana sem dormir direito, sópensando, sósonhando em se aninhar no macio ninho de rola d’alguma moçoila, até que na tarde do sábado arranjou coragem para ir sozinho à cidade. Arrumou o carro de boi, palha nova de forragem, vestiu a fatiota domingueira e partiu pro arraial pra tentar a sorte.

Bateu perna pra lá e pra cá, mas só via mulher dama na querencia de fortuna. 
E isso ele não queria!

Eis que lá numa pracinha, onde tinha uma quermesse alí do lado da igrejinha, ele mira bem nos olhos da primeira mocinha que lhe pareceu a mais ajeitada.

O coração do caboclo bateu forte que nem repique de congado e ele se enche de coragem:

-  Cê me dá um tiquinho de proseio, sá moça?

Ela se aprochegou e ele mesmo meio que desajeitado entabulou um proseio com a mocinha e la pras tantas acertou logo um namoro, mas já com promessa solene de montar casa. 

Enrrabichou de cara na primeira que deu trela.

A mocinha, que ja tinha ido pra cidade grande tentar a sorte, só tinha arrumado emprego de domestica, assim mesmo recebendo micharia, e como era bem bonitinha ainda tinha que aguentar o filho da patroa dando de cima da cobiçada. 
Vê lá se ela ia dá milho pra garnizé sem sustança?

Ela voltou pra roça e disse pra sua familia:

- Prifiro ficá por aqui, o povo da capitar tamém tá lambeno beira de penico, tá tudo lambeno imbira. Pra ganha aquele miserê eu prefiro ficar por aqui e me casá cum bão moço da roça, honesto, qui sabe dá valô a uma moça trabaiadeira. Vou botá o Santantonho em riba da prateleira do meu quarto e só viro de vorta se ele me arrumá um marido.

Até parece que funcionou, pois não é que aparece esse caboclinho, nem bonito nem feio, remediado, dono dumas terrinhas, dumas criações e cheinho de amor pra dar. Supimpa!

Ela, esperta como só essas bichinhas sabem ser, pensou mais que depressa:

- É esse! É cum ele qui vô mi casá!

Naquela mesma noite a mocinha, mais que motivada pelos galanteios e o interesse declarado dele, tratou de fazer o caboclo, dentro mesmo do carro de boi, deitados nas palhas novas, ver estrelas, sair do atraso, revirar os olhos e ficar de quatro, lingua de fora feito cachorro sedento, apaixonadissimo.

Mas dar que é bom, a mocinha nao deu. Só encochou. E como encochou.

Ela muito esperta sabia que depois que o caboclinho come a fruta ele pode muito bem cuspir o caroço, então ela fez que ia, mas não foi, deixando Florêncio todo espivitado:

- Ai, meu Deus, ela é cherosa cumas frô di laranjera!...   Mai qui belêzz!...  Lisinha que nem pessego e que quentura, meu Deus!!!

Voltou tarde da noite para casa. Tirou botinas para deitar na cama, ajeitou-se, rolou pra lá,  pra cá e acabou dormindo como um anjo, sonhando com a namorada e com o pinto ardendo de tão esfolado na esfrega.

Depois disso, a vida só mudou. O terreninho em volta da casa começou a virar fazendinha da melhor supimpitude. A casa continuou no mesmo lugar, na beira do corgo, mas só que toda melhorada, uma belezura, de tijolo e telha e caiada com janela e porta azul. Encheu a fazenda de gado, porque não queria nem pensar puxar enxada mais não, queria ficar mais tempo arrulhando em volta da pombinha que arrumara. Comprou até um fusquinha pros passeios com a futura patroa. Era um entusiasmo só. Pensava dia e noite na perseguida, já prometida com sustança, porem pra depois de botar as alianças.

Mulher quando quer, sabe trazer o homem na palma da mão. E ela tentava o bicho, cedia mas não ia, nada dos finalmente e deixava Florencio de circo armado com o palhaço só na vontade.

Marcaram o casorio.

No dia do casamento, igreja toda enfeitada com flor de laranjeira (ele dizia que era o cheiro dela). Padrinhos, convidados, todo mundo das redondezas estava lá.

Já no altar, a noivinha toda espevitada, meio distraída com o povaréu e ele sonhando com o que ainda não aconteceu, só pensando naquilo!

Cadê o padre?

O fedazunha tinha ido dar uma extrema unção no arraial vizinho e nada de chegar.

Florêncio já nem sabia onde colocar a cara vendo todo mundo olhando pra sua imaculada noivinha. No calorão, ela toda vermelhinha, parecia até  com cara já de inaugurada. E ele doido pra cortar a fita. E o bicho inquieto!

Os padrinhos num estremeço danado, comichão no pé, botinas apertando, já incomodados de estarem ali todos engomados parecendo mesmo ser testemunhas de enforcamento do Florêncio.  Ele doidinho pra por a cabeça no laço!

Depois de tempão danado, povão suando suor melado misturado com poeirão, fedendo mais que chulé de quedis, criançada irritada berrando de fome, de calor e da agonia da espera, eis que apareceu uma poeirinha ao longe, lá no pé da serra. 
Um vulto que cada vez ia crescendo mais.

É o vigário!... É não!... É!... Não é!...

Era!!!

O vigário chega num mau humor terrível,  por ter vindo apressado, montado numa égua baia de passo ruim, todo descadeirado, pernas abertas pro mode dos fundilhos que eram uma assadura só. Ele adentra apressado na igreja.

A Igreja tava um bafão dos infernos. Poeira, sovaqueira,  suadeira, comichão, cheiro de xixi azedo, tudo isso contribuindo ainda mais para o mau humor do padre. O povinho do arraial tão apertadinho que nem podia olhar pros lados. Batia nariz com nariz. 

Se alguém tirasse o pé do lugar corria o risco de ver a cerimônia num pé só....  E sem cair!

Duas horas e meia de atraso e assim começa a reza do vigário.

- Dóminusvobiscum!

- Articum ispritutuô!...

- Uóremumm.....

Florêncio tava que num se aguentava mais.

Finalmente o padre pergunta:

- Florencio, você aceita Cremilda.....

Já interrompendo grita o Florencio: - Ceito sim!

- Cremilda, você.....

- Mas pruquê eu num ia de querê? Responde feliz a noivinha.

A festa se estendeu por toda noite. Os comes e bebes abundaram.

Curioso é que ninguém, depois da saída da igreja, botou reparo nos noivos. Escafederam-se.

Dizem que hoje em dia, lá pelos lados das terras do casal, ecoam nas madrugadas alguns gemidos e que havera uma desconfiança de almas penadas vagando por ali.... mas nas conversas no balcão da venda do arraial havera controvérsias.

Só sei que o casamento continua de vento em popa, com alguns altos e baixos, mas certamente com mais altos que baixos pelo lado do Florencio. 

Cremilda  prenha, dá mostras de logo encher o quintal de adoráveis catarrentos.
  
Tela da artista plastica  Marysia Portinari ( Casamento na roça)

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