Tela do artista plástico moçambicano Antero Machado.

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segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Delicias da minha juventude V - Mais 69

O que faço eu aqui?
Com a minha recusa em ir para a AMAM, (veja aqui) ao chegar à Companhia vindo da formatura, foi dado o comando de dispersar e o capitão, comandante da minha Cia, me chamou para uma conversa em sua sala. Me recebeu amistosamente, mas sério. Os testes de QI ainda eram recentes no Brasil e para mim, parece que eles superestimavam os resultados. Para eles, eu devia ser uma peça rara. E eu não estava nem aí praquilo!
Ele ainda sem entender bem a situação, quis saber o motivo da recusa dizendo que eu não poderia desprezar o meu potencial e blá blá bla´, blá blá bla´, blá blá bla´.....
Eu lhe disse, educadamente, que estava ali recrutado, contra minha vontade e não queria servir e muito menos me tornar um militar de carreira. Disse que queria fazer o meu vestibular e continuar minha vida na iniciativa privada. Eu não me enquadrava no regime militar. Eu queria aproveitar meu potencial de outras formas
Como ultima tentativa, tentou me demover e me sugeriu a escola de sargentos.
- Capitão, vocês me oferecem ser um oficial e agora o Sr. me sugere ser um militar subalterno? Se eu não quis ser oficial muito menos sargento. Prefiro cumprir o meu tempo, da forma que estou e sair daqui o mais rápido possível.
Vendo que não me convenceria, me designou a partir daquele dia como seu ordenança e deu o assunto por encerrado. Então tá. E eu nem sabia o que era ou fazia um ordenança.
Depois fui percebendo que nada mais era do que uma mistura de Office boy com mordomo.
Percebi neste momento que ele queria me manter perto dele, sob seus olhos.
Eu era encarregado de levar carne do quartel (é, eles desviavam mantimentos) para a casa dele, cuidar de seu uniforme de gala, de suas armas e outras coisinhas mais.
Eu me tornara um reles amarra cachorro. Mas isso tinha as suas vantagens.
Eu adquirira alguns privilégios! Ele me dava um tratamento diferenciado!
O quartel todo em prontidão (durante o ano de 69 isto era corriqueiro. Vivíamos nos quartéis), com a tropa proibida de sair, eu saia para levar encomendas do meu superior e com isso aproveitava, ia em minha casa, via meus amigos (postura de office boy). 
Não ia mais às formaturas da ordem do dia todas as manhãs.
A companhia entrava em forma e eu permanecia a parte, tendo em mãos o capacete, a pistola automática e espada do capitão. Ele chegava, eu o ajudava a se compor e ele saia para conduzir a Cia à formatura. Eu ficava perambulando pelo pátio aguardando sua volta. No retorno, recolhia seus apetrechos e os guardava. Eu achava aquilo humilhante, mas também era uma mordomia.
Eu ingressara em 15 de Janeiro e na primeira semana já era conhecido igual moeda de 50 centavos. Eu era o cara do QI!
No dia 25 o quartel entra em polvorosa!  O Capitão Carlos Lamarca havia desertado no dia anterior e levara consigo em uma Kombi 63 fuzis Fal de ultima geração á época. Fuzis belgas de assalto equivalentes aos M15 americanos do Vietnam. Lamarca, durante todo o ano anterior aparecera nos noticiários e revistas, como o oficial responsável pelo treinamento dos funcionários dos bancos para aprenderem a se portar durante os assaltos. Ele treinava os seguranças dos bancos! Era o oficial de media patente mais conhecido da população em geral. Garoto propaganda do Exercito!  Agora era um membro militante e dirigente da esquerda armada, que fazia a chamada guerrilha urbana.
Este foi um dos maiores e mais duros golpes sofridos pelo exercito brasileiro. Neste mesmo dia o exercito do Brasil inteiro entrou em prontidão, guarda reforçada vigilância extrema.  Os caras ficaram paranoicos! Prisões a torto e a direito. A desconfiança era geral!
E nos, a molecada, os recrutas de uma semana de serviço, trancados no quartel.
Foi então intensificado o treinamento, pois em todo nosso regimento, por volta de 1500 homens, tinha apenas uns 5% por cento de soldados profissionais.
Os treinamentos fisicos diários eram pesados e os exercicios com arma (os Fal) se avolumaram. Os recrutas em quase sua totalidade nunca haviam pego em uma arma. Eles haviam trocado naquele ano os fuzis da primeira guerra mundial, que ainda utilizavam, por esses fuzis automáticos novos. Este era o exercito brasileiro quando se intensificou a guerrilha urbana. Os oficiais e graduados (sargentos e cabos) eram muito bem treinados, mas quem iria na linha de frente se houvesse alguma ação, éramos nos, garotos ainda imberbes, despreparados e se borrando de medo. 
A gente não sabia nem atirar em alvos e eles nos colocavam em situações que poderíamos ter que atirar em gente!  Matar ou sermos mortos!
Ou eram irresponsáveis ou nos éramos dispensáveis, era o que eu pensava.
Eu me angustiava com a perspectiva de ter que atuar em situações onde poderiam estar amigos e parentes. Eu, por exemplo, tinha um primo em primeiro grau que atuava clandestino na guerrilha urbana, participando inclusive de assaltos a banco. O que eu estava fazendo alí?
Nessa época ocorriam muitos ataques às sentinelas dos quarteis para fazerem a “expropriação” das armas. Sentinelas eram mortos! 
“Expropriação” era um eufemismo usado pelos guerrilheiros urbanos para roubo!
Assalto a banco era expropriação! Ataque às sentinelas, também!
As noticias eram nos mostradas com muito alarde e ênfase.
Os boatos corriam soltos! Começou então a doutrinação pesada.
Quando éramos escalados para o corpo da guarda, os sentinelas dos quarteis, éramos reunidos em uma sala e escutávamos estafantes palestras.
O quartel era cercado de cavaletes envoltos em arame farpado e os transeuntes não poderiam passar a menos de 50 metros dos muros. Os sentinelas eram sempre em dupla um sobre o muro e outro no passeio. Morríamos de medo de ficar no passeio, pois era quem abordava qualquer veiculo que se aproximasse. O do muro se ajoelhava e mirava o peito do motorista do caro, fuzil engatilhado, pronto. Mira fixa! Dedo coçando o gatilho!
O da rua tinha que ir até o carro e interpelar os passageiros.
Imaginem só o perigo! Tanto para o recruta quanto para os ocupantes do carro.
Se o de baixo fizesse qualquer movimento brusco, o de cima certamente atiraria sem saber com certeza o que ocorria. Ele não poderia titubear, pois o seu companheiro poderia morrer em um ataque surpresa. A guerrilha agia assim, como quem não quer nada! Eram jovens como a gente.
O risco do motorista, incauto ou não, levar um tiro era muito alto. (E isso ocorreu varias vezes!)
O medo e a inexperiência era somente o que tínhamos e eles estavam presentes!
A lavagem cerebral começava com as noticias dos ataques, fotografias de sentinelas mortos e os oficiais nos diziam claramente:
- Olha, vocês acham que os caras estão preocupados se você tem 18/19 anos, se simpatizam com eles, se são estudantes? Vocês aqui nessa farda verde, parecendo um periquito, representam o Exercito! Vocês não são nada além de um milico! E milico eles matam. Eles vão te matar pelo que você representa, o Poder. Se vocês não estiverem preocupados com a situação politica ou com o que representam, preocupem-se com a sua vida. Se alguém se aproximar, mande parar! Se não parar, atire! Não espere eles esboçarem alguma atitude agressiva, eles tem mais treino que vocês e eles não tem nada a perder! Já estão mortos mesmo, é só a gente topar com eles que morrem! Não banquem os bonzinhos, senão eles te matam. Vocês não tem escolha. Se desertarem, vocês passaram para o outro lado. Se passarem, vão ser caçados igual a eles. Se a gente achar, morrem também!
Aí eu comecei a constatar que não tinha saída. Nós eramos cordeiros em pele de lobo e todos nos viam como lobos! Não tinhamos opção! Era saltar da frigideira para o fogo e o fogo poderia ser bem real! 
Eu tinha que me manter fora das confusões e torcer para o tempo passar rápido. Se eu desse sorte, não seria envolvido em nada.  Senão......
E isso era só na terceira semana de quartel!
Ainda tinha muita coisa pela frente, mas só o inicio já deixava em pé os poucos cabelos que me restavam por baixo daquele capacete!
Depois eu conto mais.....


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