Tela do artista plástico moçambicano Antero Machado.

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terça-feira, 3 de novembro de 2020

Por onde anda o humor? O humor do Barão de Itararé!

Se há hoje um insumo escasso (ou mesmo ausente) na vida brasileira, sobretudo na política, não há dúvida de que é o humor. Nem sempre foi assim. Crises, de variados tamanhos, nunca faltaram ao país, mas o humor as permeava, mesmo nos seus piores momentos. É sua missão moral, física e metafísica. Não importa a ideologia, todos os que adentram a vida pública se expõem, gostando ou não, à Sua Excelência, o Humor. Uma caricatura vale mais que um editorial e diz mais da realidade que um tratado sociológico. Tem a síntese e a contundência de um poema gráfico. E o detalhe: não há humor a favor. É a mais ferina ferramenta crítica que Deus inseriu na Criação. Todos gostam de rir… dos outros. Só o sábio ri de si mesmo. Mas sabedoria e política raramente se encontram. Por isso, quando o tempo fecha – isto é, quando a democracia faz as malas e sai de cena -, os primeiros a entrar em cana são os humoristas. Vamos aqui falar de um deles. Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly (1895-1971), o Barão de Itararé, pontificou na imprensa dos anos 20 aos anos 60. Não obstante sua longevidade, é nome esquecido. Gaúcho de Rio Grande, iniciou-se no âmbito regional, mas, com a ocupação gaúcha do Rio de Janeiro, consolidada após a Revolução de 30, veio para a então capital federal. Veio, porém, na contramão de seus conterrâneos getulistas, que o perseguiriam – e o levariam mais de uma vez à prisão. Criou um jornal de humor que, já no título, parodiava outro; havia “A Manhã”, do jornalista e polemista Mário Rodrigues (pai do Nélson Rodrigues), e o Barão criou “A Manha”, que geraria o “Almanhaque”, hoje preciosidade de bibliófilos. Em pleno Estado Novo, “A Manha” publicou, na primeira página, foto de um bebê gorducho pelado, com a legenda: “GG quando BB”. GG era o apelido de Getúlio, mas ditaduras não gostam de intimidades. A polícia invadiu o escritório do Barão e deu-lhe uma surra. Ele então colocou uma placa na porta: “Entre sem bater”. Inicialmente, assinava Apporely, abreviação de seu extenso nome. Mas acabou chegando ao pseudônimo que o consagrou a partir da conjunção de dois acontecimentos. O primeiro, a anistia à família imperial, no governo Epitácio Pessoa, anos 20. Descendentes dos antigos nobres do Império, que escondiam sua origem, decidiram exibi-la. Já não havia riscos e tornou-se chique, fonte de prestígio. Apareceram, como era de se prever, os falsos nobres e os barões de araque, como se dizia. Mais adiante, na revolução de 30, aguardava-se o embate sangrento – o início de uma guerra civil sem precedentes – entre as forças revolucionárias de Getúlio Vargas e as tropas federais, aliadas do presidente Washington Luiz. O confronto se daria no município paranaense de Itararé. Mas acabou não acontecendo. Houve acordo. E o termo Itararé – “a batalha que não houve” – associou-se a algo que inexistiu. Dizia-se: “A festa do fulano? Foi uma festa de Itararé, uma festa de nada”. Surge então o barão inexistente: o Barão de Itararé, cujo brasão, de uma antinobreza total, era um prato, com um frango assado e talheres cruzados. Após a Intentona Comunista, de 1935, o Barão, que já estivera algumas vezes na prisão, para lá voltou. Ele e um imenso contingente de artistas, intelectuais e ativistas. A pretexto do acontecido, o governo Vargas, como preâmbulo do Estado Novo, que viria dois anos depois, iniciou uma série de prisões por todo o país. Entre outros, lá estava o escritor alagoano Graciliano Ramos, ainda desconhecido. Sujeito seco e sisudo, de sorriso escasso, não resistiu ao Barão. E o incluiu em suas “Memórias do Cárcere” (recém-reeditadas pela Editora Record). No ambiente depressivo da prisão, a chegada do Barão (recorda Graciliano) alegrou a todos. Ele criou a “Rádio Libertadora”, com uma “programação em grade”, narrada de dentro da cela. E não apenas fez Graciliano rir, como levar o riso às “Memórias”, com a “Teoria das Duas Hipóteses”. Ei-la, como Graciliano a recordou: “Apporely sustentava que tudo ia muito bem. Fundava-se a demonstração no exame de um fato de que surgiam duas alternativas; excluía-se uma, desdobrava-se a segunda em outras duas; uma se eliminava, a outra se bipartia, e assim por diante, numa cadeia comprida. Ali, onde vivíamos, Apporely afirmava, utilizando o seu método, que não havia motivo para receio. Que nos poderia acontecer? Seríamos postos em liberdade ou continuaríamos presos. Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos. Se ficássemos na prisão, deixar-nos-iam sem processo ou com processo. Se não nos processássemos, bem: à falta de provas, cedo ou tarde, nos mandariam embora. Se nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados. Se nos absolvessem, bem: nada melhor esperaríamos. Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande. Se se contentassem com pena leve, muito bem: descansaríamos algum tempo, sustentados pelo governo, depois iríamos para a rua. Se nos arrumassem pena dura, seríamos anistiados ou não. Se fôssemos anistiados, excelente: era como se não houvesse condenação. Se não nos anistiassem, cumpriríamos sentença ou morreríamos. Se cumpríssemos sentença, magnífico: voltaríamos para casa. Se morrêssemos, iríamos para o céu ou para o inferno. Se fôssemos para o céu, ótimo: era a suprema aspiração de cada um. E se fôssemos para o inferno? A cadeia findava aí.” O Barão tinha suas vítimas prediletas. Uma delas, Plínio Salgado, o líder do Integralismo, cujo lema era “Deus, Pátria e Família”. Por um lapso auditivo, disse ele, quase se filiou àquela corrente ideológica: “Entendi Adeus, Pátria e Família”. “O mal de certos políticos não é a falta de persistência. É a persistência na falta. BARÃO DE ITARARÉ Outro de seus alvos era o governador de São Paulo, Adhemar de Barros, um dos ícones do fisiologismo político de então, cujos aliados, orgulhosos, proclamavam: “Rouba, mas faz”. Adhemar candidatou-se à Presidência da República em 1960. E um de seus aliados foi pedir ao Barão uma quadrinha para uso na campanha. E o Barão saiu-se com esta: “Deus fez o homem do barro/do barro bom e batuta/mas esse Adhemar de Barros/que barro filho da puta!”. A contribuição não foi aceita. O senso de improviso é um dom dos humoristas. O repórter perguntou ao Barão como ele interpretava a Teoria da Relatividade, de Albert Einstein. E ele: “O quebra-noz é bom pra nós – e ruim pra noz”. Sua definição de anistia: “ato pelo qual o governo perdoa generosamente as injustiças e crimes que ele mesmo cometeu”. E de orçamento: “conta que o governo faz para saber onde aplicar um dinheiro que ele já gastou”. E gostava de inverter ditos populares: “de onde menos se espera… daí é que não sai nada”. Ou então” “Tempo é dinheiro? Paguemos nossas dívidas com o tempo”. Foi candidato a vereador pelo Rio – e se elegeu. Seu compromisso de campanha: “Farei na vida pública tudo o que faço na privada”. O Barão faz falta, sobretudo num momento como este. *** Texto de Ruy Fabiano, Carioca, é jornalista e escritor. Começou como repórter em O Globo, em 1972. Foi crítico de música de Última Hora e autor, nos anos 70, de verbetes de música, na Enciclopédia Barsa, sob a supervisão de Antônio Houaiss. A partir de 1979, em Brasília, dedicou-se ao jornalismo político. É autor de um romance, Profanação (A Girafa, 253 p., SP, 2005), o livro de contos "Os Arquivos de Deus" (Editora Novo Século, 209 p. SP, 2008 p.) e de um ensaio sobre “A espiritualidade em Machado de Assis”

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